sábado, 16 de agosto de 2014

Requesta

Poema do guarda-chuva fechado - Antero de Alda

Imperceptível filete escorria. Formava uma vírgula, saindo da fresta em direção ao corredor.

A ante-sala recendia a etilato consubstanciado numa fragrância qualquer. Pinho, lavanda, alfazema? Pouco importa, a não ser pelos signos que se refletem na atilada análise. O piso branco era de grandes placas de porcelanato. Logo percebo a ostentação à base de mesquinhez: economizara na mão-de-obra. Por baixo do sofanete de napa lilás, uma tomada debruçava pela abertura sem espelho – oculta desídia. As cortinas sintéticas, ordinariamente brancas, deixavam passar a claridade matutinal, desbotando avizinhadas telhas francesas. Evidentemente que investir numa paisagem marinha implicaria numa inversão mal-sucedida. O inquietante – abstruso, até – era o carmim do bandô. No mais, vogava a frieza dos arquétipos comuns a este negócio, completa pela insipidez da recepcionista. Os fios do telefone, do noutebuque, se emaranhavam contorcidos e imiscuídos por entre as pernas da moça, e tudo parecia um cipoal, de tão delgado era seu corpo. Das paredes, de um mesmo irritativo branco, solitário quadro pendia, réplica embutida em negra moldura. Compreendi, imediatamente, a procedência do noutebuque, que dependia do fio. "Elementar, meu caro." Tão primário raciocínio, como o sucedido: leva-o consigo para se organizar.

– O senhor tem hora marcada?

Engoli a saliva, acidulada pela nicotina e pelo agastamento. Era o átimo quantum satis a evitar uma grosseria. Sou lá homem de horas marcadas? O que tenho que ser, na hora precisa, sou e basta. Sem hora nem mora.

Voltei a sentir o hálito acidificado e, revendo, não fora a nicotina, mas o café. Péssimo café, destas misturas que levam na torra o milho ou o amendoim para abaixar o preço. Sentindo a apreensão da peniqueira, monossilabei afirmativo. Burocraticamente, ela enfiou seus dedos esborrachados, quase ausentes de unhas, nas teclas. Pronunciou meu nome, instando confirmação. Desta vez só assenti, condescendente menear.

– O senhor pode sentar, que já vou anunciá-lo.

De cor, a frase descorada. Ri, por dentro, rememorando Nikita obrigada a esticar a pata para ganhar seu biscoito. E, é claro que não sentei. Ainda não terminara a inspeção. Um guarda-chuva de doze varetas me espreitava por detrás da porta principal. Antes que fosse pilhado em flagrante, concentrei meu olhar na outra, que depois de uns cinco ou seis minutos se abriu. Cadela! Demorara propositalmente para marcar posição, impor domínio.

– O senhor pode passar...

A mão na tua bunda? O cartão do descrédito? Ironias e malcriadezes não faltariam. Só no imaginário, obviamente.

– Olá, como você está? – e estendeu a mão.

– Estou bem – respondi sem corresponder, a minha no bolso.

Olhei atentamente a mão. O esmalte provocaria ilações: então, agora adornava a garra? Luxinhos e vaidades que lhe permitiam o crapulear do ofício. Já tomara aquela mão na minha, esmaecido tempo. Mas o guarda-chuva nada feminil gritava. Onde teria andado aquela mão, naquela manhã? O asco me arrepiou.

– Certo, sem circunlóquios, então. Pensou na proposta?

Gostava ela do rebuscamento vocabular, das inferências imediatas, das figuras e firulas do jargão. Expressava-os com leveza, mas indisfarçável gáudio. O asco, o ácido, o destempero me vinham agora em profusão. Respirei, o quão fundo consentia enfisematoso fôlego. Não lhe daria o prazer da descompostura.

– Acordo? – sorri, de canto (e o fiz exatamente por saber que aquilo a desestabilizaria). Quais as garantias?

– Tudo homologado perante o juízo.

– Isto não garante absolutamente nada... Pare com estes embustes!

– Seja razoável...

– Sou. Lembra?

– Não misture as coisas...

– Minha cara, lamento se você ainda não aprendeu. As coisas vêm e vão misturadas. Consuetudinariamente misturadas.

As pupilas se dilataram, a íris tonalizou mais acastanhada. Os lábios se apertaram, denotando a contrafação. Odiou a contrariedade. Que artimanha poderia ainda sustentar em seu libelo? Por certo havia cercado todas as possibilidades; não lhe escaparia um só lance, e para todos se preparara. Apertou o pino da Montblanc como se aperta o detonador da carga de explosivos. O sobranceiro cheque-mate se vomitaria por iminente.

– Então não há outro caminho.

Desta vez não timbrou com reticências. O perfeito esgar das suas perfeitas construções lógicas. Ali se resumia toda a sua natureza, todos os seus vieses, todo um castelo de pedras umectadas, visguentas, escorregadias. A fortaleza, com inexpugnáveis muralhas, cingida por profundo fosso habitado por admirável coleção de reptilianas criaturas e um outro tanto de sub-reptícias volições.

– Mero sofisma do acidente.

Os lilases e carmins se refletiram na sua tez. Sabia que não haveria ganho ou vantagem. Que digladiava além das arenas legais. Que obstaculizara pela simples desconstrução. O mutismo inundou. Dei as costas e preferi a escada ao elevador. Cada degrau dos sete andares reverberando um taque-taque inconexo, dislógico.

Rua afora, o burburinho obliteraria o acídulo recalque de lábios que nunca se tocaram.


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