terça-feira, 19 de maio de 2009

Churrasco


Maio, cheiro da graxa desmanchando ao braseiro imiscuía flor de eucalipto. Fora apeando o baio que já avistaria o russo, lenço maragato e bombachas, botas cano-alto, pretas e lustro. Em pé, à frente dos outros, o sol lhe crestava a fronte e sombra competia com a de figueira. Viu quando fechou um dos olhos, apurando mira no outro. Cariótipo soviético, Dostô era sisudo, mas inspirava confiança.

Laçou moirão com a rédea, bateu pó do chiripá, se recompôs da troteada. Foi se achegando, passo descansado, sem-cerimônia.

Buenas!, chê

Dobro pozhalovat'! – chapéu bandeado, cuia na mão, o russo lhe daria meio abraço.

Esborrachada num banquinho, a voz de Johann saudou:

– Te aprochega, fifende!

Goethe içou a obesidade, que preferia bombacha e alpercatas. Franco sorriso branco, despontando algum dente dourado, estendeu mão. No contínuo, apôs quebra-costelas. Seguiu praxe, um a um firmando mão, batendo paletas. Aboletou-se num cepo e recebeu, vez de visita, honra da servida. Porongo amoldado, reavivou roda.

Johann reacenderia: "– Chegaste em boa hora. O coroné ia mesmo se gabando dum sucedido." "Causo cabeludo!" – arrematou Llosa. As atenções foram para Graciliano. Pigarreou, deu pito ao palheiro e se aprumou: "– Entonces, como eu ia dizendo – e minha santa mãezinha do céu testemunhe verdade – tive um entrevero dos brabo. Lá pras bandas do Oiapoque..." Desfiou arenga qual calango matuto que ponha jacaninã em pé e ainda lhe atente rabo-de-arraia sem sofrer bote.

O mate prosseguia mão em mão. Antes da erva se dar por lavada, um naco, que já desossava, rompeu por aperitivo. No seu canto, chiru Llosa há tempos desembainhara o três-listras. Guapo, rangia fundo à charla, chairando enquanto acoitava vez. Deu-se o primeiro a provar da minga, firmando osso quente na calejada, cravando dentes. A lâmina se incumbiria de porção, descendo rente ao bigode.

Fez-se agrado ao mulherio, lascas escolhidas. Johann chamou Clarice a lhes alçar prato. A patroa já fora noiva de um certo Whitman. Cismara com o americano a tratando por Cléris. Não era ela. Ou quando, açucaradamente, lhe desferia um honey, que mais soava a pônei. Noite qualquer, sonhara com ninhada de centauros lourinhos. Dia seguinte, desfez.

Da cozinha, as solteiras espiavam. As casadas comandavam, advertindo cebolas e limões, salada, suco e temperos. Alvoroço de chitas encobrindo brasas. Assanhando-se. Assando-se. Churrasco, que nada. Venha logo esse gaiteiro, traga bailanta!

– E esse moço que chegou há pouco, tia Clá?

Te apiana!, Flor

Não fosse malagueta a pimenta, que se ardesse na prudência. E adianta?

– Mas ouvi dizer que faz verso, que declama...

– Só um almofadinha da cidade, metido a trovar nas canchas de osso.

– Tem nome ele, não?

Clarice bem sabia que é besteira aguar. Que água só faz espalhar. Que jogá-la às chamas só levantaria cinzas.

Lhe chamam Pessoa. Um tal de Nando.

Clarice há muito sabia...

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Planador

Respiro nos teus ventos
Alço-te em sobrevoo

Pico e cabro
Devorando coxilhas
Em asas sem propulsor

domingo, 3 de maio de 2009

As Coisas Mais Simples

                 O que me dói é não ter enviado um buquê. É não ter feito aquele passeio mais besta pela praia, só pra curtir um pôr-do-sol. Ou não tomar um sorvete e lamber carinhosamente o teu queixo, pra aparar um filete que se deixou escapar dos lábios.

                 O que me dói é não ter corrido pra te levar um guarda-chuva na saída da escola e ficar com a maior cara-de-tacho porque o sol trapaceou e resolveu reaparecer. É não ter assistido àquele primeiro filme que provocou uma tremura na alma e ficar taquicardíaco toda vez que toca aquela música. Ou não ter escrito o 'eu te amo' num cartão do dia dos namorados.

                 O que me dói é não ter subido ao terraço daquele prédio mais alto e olhar pras luzes e pras estrelas, como se fôssemos o topo do mundo e que o universo é que girava em torno de nós. É não ter sofrido os minutos da espera por um encontro e perceber que os segundos da ausência são um imenso tempo perdido. Ou não ter rido dos tênis sujos com o orvalho e o pó da terra e dos jeans impregnados de pega-pegas, depois de um andar de mãos-dadas pelo campo.

                 O que me dói é não ter me sentido o grande cavaleiro que enfrentou o dragão da farmácia e trouxe pra sua heroína um mero pacote de absorventes. É não ter entrado duas vezes na mesma fila pra ganhar mais uma provinha de sei-lá-o-quê e retribuir com um sorriso o ar condescendente da demonstradora. Ou não ter se fingido de indiferente pelas unhas pintadas num tom diferente e tentar manter a farsa diante da cara azeda de decepção, só pra poder imaginar a cena de uma bolsa sendo aberta, onde um misterioso bilhetinho confessa ter adorado a cor: "— Cachorro!"

                 O que me dói não é não ter a fúria das bocas se engolindo de paixão. Não é a saudade dos corpos se esfregando alucinadamente. Nem a falta do abraço mais confortante depois do êxtase. O que me dói foi não ter vivido isso: as coisas mais simples.