quarta-feira, 28 de julho de 2010

Gosto de Ser Suspeito


Gosto de ser suspeito. Pessoas suspeitas são constantes, não causam surpresa. Estão acima de juízos porque já trazem, em si, algo condenável. Ninguém sabe, ao certo. Mas, dirão, é certo.

A suspeição recomenda que os dois pés fiquem atrás. Indivíduos com esta pecha gozam de uma popularidade sem alarde. A possibilidade de um flagrante, de um indício, converge.

Manter uma aura duvidosa proporciona respeito e um distanciamento salutar. As portas se abrem com redobrados cuidados e ninguém lhes pede dinheiro. Ah, e quando fazem uso do instrumento vocal, o ambiente amplia a diversidade acústica. É como se lograssem ouvir o canto do uirapuru no bico de um curió.

Um bom suspeito deve saber inspirar desconfianças, com calma e método. Olhar pelos cantos, não pagar em cheque ou com notas amassadas e nunca parar para acender um cigarro. Nem para conferir o restaurante que acabou de explodir.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Inolvidável

Menos arredio ao que represente a controvérsia do inexplicável, desguarneço as seteiras do castelo das ideias. Diante desta impressão, a imparidade da expressão só me parece comparável às fragrâncias da saudade.

Ao sarro que se deposita no fundo da garrafa da existência não se concedem méritos. É dos matizes e notas se oxidando, entregando-se ao fruir deletério, a essência do olvidar.

O etéreo ao etéreo pertence. Rasgando o córtex, aquele douto investigador das tessituras e dos fisiologismos é que não deslindará o intangível. Terá, por sinistro, amputado o próprio destro. Quão cega perscrutaria esta lâmina.

O inolvidável está no pigmento que sussurra além das fragilidades da tela. Não a sombra, que se projeta a posteriori, fugidia. Autoiluminado, é visão que precederá, se redesenhando.

Recostado ao espaldar quimérico, transcendo a sentinela dos sentidos. Subo à torre. O sentir ultrapassa o fosso do inexplicável e, remanescidos, recolho perfumes de flamboiãs, frêmitos de trigais, aquarelas crepusculares. O balouçar de algum véu, talvez. Dos ventos e das venturas, eis, a mim, o inolvidável.

sábado, 17 de julho de 2010

Inexplicável

Precatando-me com plausível, seguro e confortável distanciamento daquilo que se possa auferir por filosófico, me arrisco a afirmar que este vocábulo caminha sob bruxuleante luminar, fadado a figurar nos alfarrábios da ignorância.

A Literatura ministra a pílula do inexplicável, recobrindo-a com insuspeitos auríferos de quilate hermético ou idiossincrásico. Resta saber, diria um experto ourives, se a peça fora mergulhada em fundição ou apenas revestida por delgada folha do puro metal.

A sabedoria popular ensina que explicações são devidas, tão somente, aos circunspetos delegados da Polícia ou a truculentos porteiros. Os primeiros as tomam a termo, as lavram para ulterior apuro. Com admirável pragmatismo, os últimos solvem.

Na caserna, o jargão consolida: o que se justifica não se explica. É uma visão positivista, sem hesitações. A dúvida pendurar-se-á na conta do imaginário. Do metafísico e invisível pelotão, quando, nas trocas de guarda encobertas pela neblina que vai da hora zero ao alvorecer, era possível pressenti-lo em cadência de coturnos se estancando diante da gruta. A casamata, que outrora abrigou paiol, cuspira seu conteúdo, dizimando a guarnição.

Saiamos, pois, desta parva névoa. Dirá, o experimentado alopata, que tudo o fez, nos limites da cognição psiquiátrica, para a cura. Que o incurável, o é, por inexplicáveis disfunções sinápticas. Ora, confesse-o, então, que, insipiente, ainda não alcançou determinar causa com precisão. O inexplicável, meu caro doutor, adjudique-o ao simplório diagnóstico, enquanto ainda busque com o quê prognosticar. Não é da Natureza se fazer passar por desordenada naquilo em que a inteligência ainda não encontrou a ordem?

Dia haverá que destruiremos este Mundo. Sim, este e, talvez, outros. É da imponderável e incógnita bioadversidade. É, ainda, do inexplicável.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O Teste

A sinuosidade do vapor flui do líquido negro e aromático, levemente balançada a cada baforada. O ar carregado de frio faz barreira invisível e, à fumaça expelida, segue-se um rastro de humores condensados. Por uma imprecisão temporal, os pensamentos se misturam a este desarranjo, desabando sobre a nitidez da louça. Descruzo as pernas e as tranço, novamente, mudando o lado, reajeitando a saia para que volte a recobrir. O balcão começa a ganhar movimento. Entre sorvos e tilintares de colherinhas, as coxas recebem a onda tépida de indisfarçáveis desejos. Estico, instintivamente, o veludo riscado e vermelho. Não por pudor, mas é a frialdade que age. Os pequenos pontos róseos que acusam a temperatura na pele clara parecem acirrar os tilintares. Sinto a excitação, que só titubeia quando percorre o restante e estanca nos scarpins pretos. Agradeço calada a aprovação daqueles imbecis e refaço o batom corrompido pelo filtro do cigarro. Entre causa e efeitos, me sinto absolutamente segura. O mentol cuidará do hálito e a vaga será minha.