segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Legado


Por que tanto cuidado, meu bem?
Palavras escolhidas, a não contradição
É isso que se aprende na escola da traição?
Ou na porra da faculdade do vade-mete e mecum-vem

Ah, não me venhas com o ato perfeito
A vazia denúncia, a procrastinada intenção
Ou com as tuas tautologias de segunda e terceira mão
As minhas cabeças merecem um pouco mais de respeito

Mas não temas expor teu casto corpo ao delito
Nessa refrega é que estarei mais bem presente
No rábeas córpus em que já me pronunciei indecente
São teus ouvidos o eterno fórum dos meus gritos

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Ritmo, Amores e Velocidade


Se tem uma coisa que não combina comigo é a tal da ataraxia. Já nasci agitado, com o pé embaixo e o pinto em posição de tiro.

Sou roqueiro, mas gosto da vibração de outros gêneros que contenham um arranjo carregado no baixo e na bateria. Quero, é mesmo, ver o papelão do alto-falante estrebuchar, estourar.

A energia do ritmo é adrenalinamente alucinógena. Sinto o sangue correr mais rápido, zoar dentro das artérias. Preciso sentir a música com o corpo inteiro. Como se reverberasse e voltasse pelos poros, formando uma espécie de espírito exterior. Esta aura então me comanda, me inspira, se apodera das volições. A começar pelo pé, acalcanhando a batida. Dançar, então, é o sacramento da comunhão.

Não posso dizer se amei. Ao menos, acreditei que sim. Desde que houvesse paixão. Não digo desse foguinho de palha, comum, que não cozinha. Tem que ser daqueles que fazem a pressão da panela explodir. Não fosse full-time, não o seria, também.

Vivi todos os quereres engasgando com o coração, com tijolos gelados no estômago. Do tipo em que se atende o telefone e se sente – sempre! – um choque, uma eletricidade eufórica. Isso, com o celular, nem tem mais a mesma graça. Metade da emoção vai embora com o reconhecimento da chamada.

Mas é na estrada que enfio, de vez, o pé na jaca. Não curto partidas nem chegadas. É o meio, esse intenso meio, que me fascina. Com curvas, melhor ainda. Não sou porra-louca, conheço os limites. E me excita tangenciá-los. No desenho da pista, no dial do rádio e nas coxas que vão no banco do carona.


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Uma Historinha


– Posso te dar um pouco de carinho?

Tentei abrir os olhos, mas estavam febris, remelentos. A zonzeira da maldormida noite me acossava. Corpo moído, doído, insisti em fixar.

– Como assim, quem é você?

A visão morava fora da realidade, uma completa descontextualização. Agradável, entretanto. Tinha dois olhinhos azuis, pequenos, mas de inquietante vivacidade. Os cabelos não loiros, amarelos, contrastavam lisamente com a redondez das bochechas. A boca, miúda, mantinha o sorriso serelepe. Os bracinhos, as mãozinhas, tudo aspectava a uma bonequinha de biscuit. E estava ali, descalça e envelopada num vestido leve, muito azul, sentada ao pé da cama.

– Perguntei se posso te dar um pouco de carinho... Posso?

Tentei saltar, mas foi inútil. As amarras da prostração não cederam. Derribado, só fiz balbuciar um "anrã", um aquiescente e depauperado "anrã". A cabeça afundou no travesseiro, que fervia. Senti a fragrância suave exalando da mão que se aproximava. Tocou-me os cabelos e os acariciou, com uma leveza inimaginável para aquela mão. Sedado pelo mimo, adormeci.

O rascar do trilho da cortina violentou meu sono. O sacerdote viera ministrar a extrema. Fitou-me, algo perplexo, algo atemorizado. Estaria diante de um milagre ou do próprio demônio?

Espantos dissipados, tratei de forrar o bucho, que há muito já não se ocupava. Enquanto corria o repasto, perguntei aos de casa sobre a insólita visita. Entreolharam-se, pantomimas reticentes, exclamativas.

– Guria? – indagaram, em uníssono.

– Sei lá, acho que delirei. A febre...

Portões cadeados, câmeras, a gentarada, tudo conspirava em desfavor. Acabei por desistir.

À noite, o noticiário destacaria a trágica queda de uma garota, que despencara da cobertura, na festa dos seus quinze anos. As imagens restringiram o foco a um desencontrado par de sandálias de salto.


quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Falso Poeta


O cara rabisca umas rimas e já dizem que é poeta. Aconteceu comigo.

Pois bem, se o outro, lá, diz que o poeta é um fingidor, fingi que era fingidor. Nunca gostei de poesia. Julgava coisa de fresco, de efeminado. De homem fraco, embusteiro, que enrola, enrola, e não vai ao ponto. Exceção ao Boca, sujeito matuto e matreiro. Não era do tipo nhenhenhém. Lascava o verbo, feito retraço de comprimento certo. Um violeiro sem viola. Um violador dos maus costumes. Dizem que alugava a pena. E não é da praxe de um advogado?

Andei alugando a minha, também. A mim mesmo. Larguei, por aí, uns pastiches, uns radicci com bacon frito. Afinal, não foi o Henry quem profetizou que tudo vale pra baixar umas calcinhas? D'accord. Agora estou velho demais para isso e na última tentativa nem deu lá muito certo. Aliás, o certo, mesmo, é que não deu.

Ó-quêi, eu não precisava ser tão tacanho. Posso aplicar uma demão de verniz, mesmo que o cerne permaneça bruto. Posso entender que a palavra é tinta deitada à tela, irradiando impressões com leveza ou vigor. Posso acatar as idiossincrasias e às polissemias aceder também posso. Abrandar a palavra e lhe dar as nuanças, os matizes cultos. Acarinhar o vernáculo, instigando-o a um mútuo e prazeroso enlevo. Porque há reciprocidade, sim. Na medida em que elevamos o pensamento, a inspiração reverberará luminescentes possibilidades.

O que não posso é tentar me apossar do impossível.


terça-feira, 19 de agosto de 2014

Lili Marley e Jarbas Alonso

Meu nome não é Alonso nem o dela Marley. Mas fomos. E deste fomos sucede o que somos.

Ela me ensinou a borboletear e eu a ela acrescentar pimentão à sopa. Foi tenso, faltou bom-senso, mas rolou intenso.

Poderia contar detalhes, mas pra quê? Pra vocês morrerem de inveja e botarem um olho com peso de boi de abate? Ah, vão comer um pastel de abacate! Ou seria de alface?

Foi assim, numa marrecada, casa de dignos amigos caçadores, com marrecos capturados no mercado público. Eu chambão, ela voando as tranças. Aliás, a trança, arrebatadora trança.

Pirei. Pirei na batatinha. Viajei no purê. Ela dura na queda, caidaço eu. Jogado aos seus pezinhos 36.

Não houve beijo. Espera, deixa eu contar! Se é que existe palavra neste mundo pra dizer. Porque não foi deste mundo. Não, não foi mesmo. Uma conexão metafísica, talvez. Almas se beijam? Tá, vou deixar a frescura de lado. Abandonamos o medo, a incerteza, a expectativa e nos completamos. Fluidamente ionizados. Eletrostaticamente inversos. Agora piorou. Foi péssimo, isso. Sucumbe quem o inefável tenta decifrar.

Sei que ela está me lendo. Lendo e rindo. Até se mijar. Não há pudores na liberdade de amar.

Mas o que se pode esperar de duas cabeças-de-vento? A geminiana e o aquariano... Apetites satisfeitos na incensurável gula e um vendaval.

As pessoas adoram causar. Causávamos para nós mesmos. Exceto aquela vez que a tua minissaia calou quatrocentos talheres masculinos na churrascaria. A perplexidade dos comuns esbarra nas coxas, mas desconhece a sutileza da sapatilha.

Estrambótico tenha sido namorar às sete da manhã, ouvindo o pagode daquele bitata à beira do rio. Louco, sim, por querer assim. E por assim querer, guardo, inolvidável, a leveza encantadora dos teus fios de seda cintilados à luz de quem te dá nome.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

À Minha Primeira Namorada

Esta, apesar de ridícula, não é de amor uma carta.

Sabe, M., há coisas na vida que escapam da compreensão. Por mais que tenhamos certeza de possuir todas as peças, não há solução para o encaixe. Dois anos antes de te conhecer, matei aula para me inscrever no exame de seleção, lá no Julinho. Junto com alguns colegas, eles formalizariam, não eu. Fui na base da folia, sem nada. Depois, corri atrás. O que suscita é que passei, não eles.

Cooptaram-me, ano final, a secretário da agremiação estudantil. Supersônica carreira, alcei voo à presidência. Havia, então, que reunir-me com os líderes. O tumulto já se calculava, pois a casa andara fora do arrumo por tempos. Não bastasse a tremura pelo enfrentamento, havia dois olhos acesos, fixos, diretos. Desorientadores. Paradoxalmente, aquiescentes. Desejei que a ladainha terminasse de uma vez. Eu sei, M., a natureza privilegiou a alma feminina, desnecessário tripudiar: é claro que tu serias a última a sair!

A casualidade proporcionou os encontros. Será? Bem, se ela não desse conta do recado, o meu pescoço o faria. E te cerquei, te encurralei contra a parede para roubar o primeiro beijo. Lembras? Fugiste. Mãos dadas, às escondidas, tão e só. Nunca rolou o beijo. Estranho namoro estranho.

Um dia, o último antes das férias, só disse: – "Lá vem o meu. Tchau!". Embarquei e sumi.

Nunca entendeste. Nem eu. Mas a deusa dos mal-resolvidos casos se interpõe e instiga. Visitei o cliente e me deparei contigo. Constrangido, tive que te encarar. Perplexo, ao te saber noiva e, apesar de, a confissão: o diário que só continha jota, jota, jota...

Ou, daquela vez, em que levo meu pai àquele bairro e paramos justamente em frente a tua casa! Como não sucumbir?

A festa de empresa no clube onde ministrávamos curso foi o viés mais mefistofélico – e essa palavra é parte do teu legado – dessa deusa, que insiste em se ocultar sob os véus do casual. Aproveitei o intervalo e, irrefreável, desci. Dançamos. Entre sombras e luminescências, no palco do irreal, vez primeira acolho teu peito no meu. Na saída, o táxi. Chovia, lembras? Roçamos os lábios e senti mais que pingos a me umectar a face.

Absorto, os mosaicos da Rua da Praia se fundiam com a desordem das ideias. "Pensando na vida?" Assaltado pela mão que segurava o braço, me rendi. Como resistir, M.? Quase uma dezena de anos e a mesma incandescência a me perscrutar. O composto precipitado de casamentos caóticos emanaria comburente.

Confrangidas esperas em furtivas manhãs de sábado, o fetiche da boina donde escorriam os reflexos dos cabelos e o jogo de esquivas e tergiversações se incumbiriam da derrocada. M., tu só querias viver um sonho, lembras? Sem culpas. Ao amparo da mais sagaz hermenêutica. Enfim, os lábios que antes só esgrimiam intermináveis colóquios, baixaram a guarda.

Três dias, três semanas, três meses? Não sei, M., foi tão etéreo, tão atemporal...

Repiso o exórdio, as primícias. Não de amor é uma carta. Por inexata, premissa também não é. Talvez só o cenário para exercitar o monólogo shakespeariano, com alquebrada indagação: por que nunca brigamos?


sábado, 16 de agosto de 2014

Requesta

Poema do guarda-chuva fechado - Antero de Alda

Imperceptível filete escorria. Formava uma vírgula, saindo da fresta em direção ao corredor.

A ante-sala recendia a etilato consubstanciado numa fragrância qualquer. Pinho, lavanda, alfazema? Pouco importa, a não ser pelos signos que se refletem na atilada análise. O piso branco era de grandes placas de porcelanato. Logo percebo a ostentação à base de mesquinhez: economizara na mão-de-obra. Por baixo do sofanete de napa lilás, uma tomada debruçava pela abertura sem espelho – oculta desídia. As cortinas sintéticas, ordinariamente brancas, deixavam passar a claridade matutinal, desbotando avizinhadas telhas francesas. Evidentemente que investir numa paisagem marinha implicaria numa inversão mal-sucedida. O inquietante – abstruso, até – era o carmim do bandô. No mais, vogava a frieza dos arquétipos comuns a este negócio, completa pela insipidez da recepcionista. Os fios do telefone, do noutebuque, se emaranhavam contorcidos e imiscuídos por entre as pernas da moça, e tudo parecia um cipoal, de tão delgado era seu corpo. Das paredes, de um mesmo irritativo branco, solitário quadro pendia, réplica embutida em negra moldura. Compreendi, imediatamente, a procedência do noutebuque, que dependia do fio. "Elementar, meu caro." Tão primário raciocínio, como o sucedido: leva-o consigo para se organizar.

– O senhor tem hora marcada?

Engoli a saliva, acidulada pela nicotina e pelo agastamento. Era o átimo quantum satis a evitar uma grosseria. Sou lá homem de horas marcadas? O que tenho que ser, na hora precisa, sou e basta. Sem hora nem mora.

Voltei a sentir o hálito acidificado e, revendo, não fora a nicotina, mas o café. Péssimo café, destas misturas que levam na torra o milho ou o amendoim para abaixar o preço. Sentindo a apreensão da peniqueira, monossilabei afirmativo. Burocraticamente, ela enfiou seus dedos esborrachados, quase ausentes de unhas, nas teclas. Pronunciou meu nome, instando confirmação. Desta vez só assenti, condescendente menear.

– O senhor pode sentar, que já vou anunciá-lo.

De cor, a frase descorada. Ri, por dentro, rememorando Nikita obrigada a esticar a pata para ganhar seu biscoito. E, é claro que não sentei. Ainda não terminara a inspeção. Um guarda-chuva de doze varetas me espreitava por detrás da porta principal. Antes que fosse pilhado em flagrante, concentrei meu olhar na outra, que depois de uns cinco ou seis minutos se abriu. Cadela! Demorara propositalmente para marcar posição, impor domínio.

– O senhor pode passar...

A mão na tua bunda? O cartão do descrédito? Ironias e malcriadezes não faltariam. Só no imaginário, obviamente.

– Olá, como você está? – e estendeu a mão.

– Estou bem – respondi sem corresponder, a minha no bolso.

Olhei atentamente a mão. O esmalte provocaria ilações: então, agora adornava a garra? Luxinhos e vaidades que lhe permitiam o crapulear do ofício. Já tomara aquela mão na minha, esmaecido tempo. Mas o guarda-chuva nada feminil gritava. Onde teria andado aquela mão, naquela manhã? O asco me arrepiou.

– Certo, sem circunlóquios, então. Pensou na proposta?

Gostava ela do rebuscamento vocabular, das inferências imediatas, das figuras e firulas do jargão. Expressava-os com leveza, mas indisfarçável gáudio. O asco, o ácido, o destempero me vinham agora em profusão. Respirei, o quão fundo consentia enfisematoso fôlego. Não lhe daria o prazer da descompostura.

– Acordo? – sorri, de canto (e o fiz exatamente por saber que aquilo a desestabilizaria). Quais as garantias?

– Tudo homologado perante o juízo.

– Isto não garante absolutamente nada... Pare com estes embustes!

– Seja razoável...

– Sou. Lembra?

– Não misture as coisas...

– Minha cara, lamento se você ainda não aprendeu. As coisas vêm e vão misturadas. Consuetudinariamente misturadas.

As pupilas se dilataram, a íris tonalizou mais acastanhada. Os lábios se apertaram, denotando a contrafação. Odiou a contrariedade. Que artimanha poderia ainda sustentar em seu libelo? Por certo havia cercado todas as possibilidades; não lhe escaparia um só lance, e para todos se preparara. Apertou o pino da Montblanc como se aperta o detonador da carga de explosivos. O sobranceiro cheque-mate se vomitaria por iminente.

– Então não há outro caminho.

Desta vez não timbrou com reticências. O perfeito esgar das suas perfeitas construções lógicas. Ali se resumia toda a sua natureza, todos os seus vieses, todo um castelo de pedras umectadas, visguentas, escorregadias. A fortaleza, com inexpugnáveis muralhas, cingida por profundo fosso habitado por admirável coleção de reptilianas criaturas e um outro tanto de sub-reptícias volições.

– Mero sofisma do acidente.

Os lilases e carmins se refletiram na sua tez. Sabia que não haveria ganho ou vantagem. Que digladiava além das arenas legais. Que obstaculizara pela simples desconstrução. O mutismo inundou. Dei as costas e preferi a escada ao elevador. Cada degrau dos sete andares reverberando um taque-taque inconexo, dislógico.

Rua afora, o burburinho obliteraria o acídulo recalque de lábios que nunca se tocaram.