quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Diagnose

Precisão de oculista
Vejo certo no errado
Do outro lado da vista

Tomando pulso caótico
Arrisco, cardiologista
Bradicárdico prognóstico

Se foi outra a simbiose
Escapa um drama psicótico
Fluindo por overdose

Impaciente me acalma
Uma gota por osmose
Umedecendo a alma

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Hitler Terminal



                 Estive, estes dias, com Adolfo, lá no bunker. Ele não estava nada bem. A revista Óia, tão ciosa quanto propaganda de cerveja, bavariá, exibira um intrincado diagnóstico. Seria algo em torno de quatrocentos e oitenta e cinco desvios de personalidade, segundo o Siguimundo. Ah, não vou entrar no mérito, mas paranóia, não! Pelo que me consta, era o baixinho quem botava mania. Hey, Hit, taí um verbo que combina com a tua farda: botar! Percebi uma faísca de aprovação.

                 Jogamos escova. Por delicadeza e prudência, entreguei o sete belo. Diplomático, me inteirara da preferência dele por naipes claros. Bebemos e não fumei. Ele não aspira fumaça. Diz não cair nas falácias hollywoodianas. Não é salutar, confidencia.

                 Exatamente às cinco, a senhorita Braun nos apresenta a um chá digestivo. Senta num mochinho e, bem namoradinha, fica ajeitando e alisando a franja daquela cara macilenta. Teria sido dela a idéia do bigodinho? Sabe como as mulheres são, quando querem desviar o foco de seus fetiches...

                 Súbito, ouve-se uma rajada:

                 — Halt! Halt! Halt! Halt! Halt! Halt! Halt! Halt! Halt! Halt! Halt! Halt!

                 “Não é nada” — acalma, fazendo sinal para um SS, que logo daria uma pancada nas costas do soldadinho, pondo um hunf! àquela sequência de halts. Adicionou que o infeliz precisava ser remanejado. "Distúrbios de confinamento" — fez muxoxo.

                 — Hit, não te incomoda legar uma memória tão, por assim dizer, assombrosa? — arrisquei.

                 Descendo a mão de cartas lentamente sobre a mesa, por alguns segundos me fixou.

                 — Du bist Jude, nein?

                 — Você é judeu, não? — refez, percebendo a dificuldade.

                 Não respondi nem que sim, nem que não. As pupilas foram sumindo e me atravessaram. Surpreendeu-me, então, num tom ameno, quase balbuciante:

                 — O que está feito, está feito. Nunca fiz mal sequer a uma mosca. Nem alemão eu sou.

                 Alguns dias depois caía o Reich, e o New York Times publicaria a matéria, logo abaixo do destaque dado ao sumiço do corpo. Fiquei puto com a mexida perpetrada pelo editor-chefe. Engendrou uma linha jamais proferida: "— Não me culpem por idolatrias, nem me acusem pelos excessos, se são vocês que duvidam da Ressurreição!".

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Leituras

                 Poderia dizer daqueles trejeitos esguios, farfalhando as páginas, roçando a brancura das fibras. Do vai e vem instigante, suscitando por detrás da delicada lingerie dos aros. Ou da malícia se projetando pelas fímbrias do short, toda vez que cruzava e descruzava. Dos mistérios desnudos, flagrados por alguma brisa, em que só brincos pendiam. Ou da maciez arfando em par, por debaixo do livro.

                 Mas fora no balanço da sandália, perigosamente escorregando, até se deixar cair, que lhe espocou uma última gota e transbordou-se.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Bonecas Violentadas

                 "Estupraram minha Barbie!" — berrou. O caso foi parar na polícia. Testemunhas ouvidas, perícia concluída, havia resquícios de sêmen na bendita. Começaram especulações. Até aquela apresentadora que montou na preta, e, depois, na grana, se manifestou: "— É mais um atentado contra loiras...". Somaram-se, ao coro, os quiquis de uma tal Quéli.

                 Sei que a coisa evoluiu e foi fazer ponto, com direito a programa, lá nos corredores da emissora. Ibope sempre dá muvuca. Vai que vai, surgiu suspeito. Delegado experto logo veria neguinho atrás de glória. As opiniões se dividiam. Uns querendo vingança, a turma do deixa disso só história. Que entraria, enfim, para a História — e fim.

                 Questão era que a vítima nem sabia falar. Já nascera traumatizada — escorchavam — a coitadinha.

Banho


                 Enquanto se despia, gemidos e sussurros ecoavam, impregnando. Abriu e a torrente desceu. Resvalando. Percorrendo. Lavava-se em volúpias, acariciando recônditos. Sutil piparote e a torneira reteve fluxo. Quereria aquela tepidez.

                 Ferveu-se nas espumas que avolumavam. Espalhou-se, concentrando: "— Caralho, porque não fazem sabonetes anatômicos?".

domingo, 11 de janeiro de 2009

Rali Gaza-Rocinha

                 Um foguete é lançado. O pneu traseiro do Caveirão se incendeia, deixando um rastro de lava ao chão batido, até consumir-se em arames. O rodado fica vazio. Tatuado com triângulos de David, o mostro sai, claudicando. A histeria toma conta. Mães empapam de lágrimas os alcorões da Igreja Universal, vociferando salmos. "É só uma contra-ofensiva" — resmunga o oficial com dois pentagramas cintilantes nas ombreiras.

                 As estatísticas da fidelidade digital filtram keffiehs do mal. Nas covas rasas, o descarte da inocência.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Sapatos

Rasputin em palácio, Booth ao teatro, piloto-de-onze-de-setembro, adentrou a loja. Mirou a balconista e disparou à queima-roupa: “– Me dê aqueles!”, apontando preto e reluzente par.

Ungiu-se por rei ao calçá-los e, coroa servida, reivindicou, com delicadeza, mote em banalidade qualquer – a alma a lhe exigir digno estojo – caixa intacta.

Saiu com o embrulho, imerso. Alegria permeada por estoicos relances. Ora a renúncia a partes da já minguada ração, ora as quentes noites dormidas sem ventilador. Dos instantes em que a vitrine fora ansiado espetáculo, dos dias que atravessara rua para não encará-la.

...

Chapinhou delírios nas poças armadilhadas por camuflante capim. Resvalou sonhos no barro endemoninhado, agarrando-se às solas, vomitando-se por cima do cromo. Derreou-se, por fim, de todas as ilusões, infectas e escoriadas por pés de um ônibus lotado.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A Febre

                 Não saberia por quanto tempo. Se entrara sozinha ou viera acompanhada — havia um fio de claridade riscando a soleira do banheiro. Não ouvira batidas à porta, nem que o chamassem. O corpo ardia, pele porejando. Por que estaria ali? Merda de farmácia! Estaria fechada. Protegiam-se. Ele que se arrebentasse. Outra agulhada nas costas o fez contrair os músculos da face. A febre basculava continuamente o olhar. Alternavam-se, definição, turvações. Tentou fixá-la, mas a intermitência quase nada permitia. Reto vestido azulado. Tão desbotado quanto o pouco que não cobria.

                 Pensara acordar vizinho, mas fraquejaria. A impassibilidade naquele rosto lhe relanceou invulgar familiaridade. Já encharcado, queimava. O calendário, a santa ceia, a frigideira, um maço de macelas, tudo o que pendia das paredes se punha em ciranda. Buscando uma freqüência mais baixa, somente luzências ainda atravessariam os canais óticos. Do bule. Da velha panela. Da delicada pulseira dourada, no pulso da menina.

                 ...

                 Marília o soube pelo jornal. A folga as quartas permitia ao mundo adentrar a pequenez do cômodo. Empilhando-se, fasciculado. Indômitos, os olhos recortavam. Ávidos pela crônica do existir, recaíam nas páginas da violência. Um nome arregalaria, palpitaria, lhe causando nó: "Encontrado Corpo de Homem Dentro de Casa. A polícia, alertada por vizinhos que sentiram forte cheiro e desconfiaram das luzes acesas por mais de três dias, compareceu à casa de Sebastião Alves, 51, na vila Nazareno. A porta da cozinha, escancarada, sem sinais de arrombamento, facilitou o acesso dos policiais. No piso, em decúbito dorsal, o cadáver ocultava profundo ferimento às costas.".

                 Lívida, mergulhou-se. Há quatorze anos separaram-se. Parira desgraça. Consumada em não diagnosticável doença. Fatal. Sentindo arrefecer o formigamento da fronte, continuaria: "Segundo o delegado Cléber, não há suspeitos. A Homicídios intensificará as investigações com base em pistas iniciais. A vítima, informou a perícia, segurava uma pulseira de ouro, daquelas com a plaqueta que grava o batismo de alguma criança.".

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

És Portuguesa, com Certeza

Ave santo lexicógrafo
Gramático minimalista
Lusófonos tarados

Eis hiper-retro tacógrafo
Na autoestrada simplista
Dos buracos mal tapados

Temendo o trema às vistas
Liquefacientes linguistas
Caçam antirreformistas

Viva! ao editor que extorque
Com anticultura patética
Imprimindo dicionários

Resguarde-se à nova iorque
Consoante a neoestética
Tais virginais relicários

Nas escrituras da hora
Deem-se todos em paranoia
Ilustre-se o chão co'essa cera

Mais um pouco não demora
Da serpente fazerem jiboia
A maçã descendo à pera

Averigúe, pacata plateia
Cordial cordata à alcateia
Não veem brilhante a ideia?

Se acentua-se mal o leitor
Na feiura causando enjoo
De assentos que não se leem

Entra polo cu d'escritor
Um caralho em raso voo
Ai daqueles que não creem