quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Policromias Nada Psicodélicas

Trinta e dois graus centígrados. Invejei a ereção do termômetro, que continuava em plena ascensão. Ela acabara de me colocar na galeria da suspeição. Neguei. Todo culpado nega. Então, eu seria uma aberração, um pansexual? Neguei e continuei: "– Sai fora, isso é coisa do Sergei!". Querendo atenuar minha pena, propus assumir em parte. Ou partes. E parti, sem apartes, para a assunção de uma certa polissexualidade. A desconfiança, inculcada com malícia, fazia com que eu me enrolasse nos próprios argumentos: "– Mas não posso sê-lo como autor, como personagem?". "Sei não..." – e desligou.

Rememorei a proporção dos vídeos, dois policiais para um caubói. Revi a cena. Entrei na locadora – que, a esta altura, já luzia como loucad'oro – e caminhei até o balcão. Pedi sugestões e contra-ataquei com o Rainer. De bermudas, chinelos, cabelos e barbas abundantes, desgrenhados, e as unhas extremamente compridas. Na minha ótica, um lobisomem.

Refiz a personagem. Colori, ajustei e estampei as bermudas. Coloquei uma pérola em cada chinelo. Por cima dos ombros, escorreria um bolerinho, de tecido bem fino, realce aos mamilos. Retirei totalmente a barba, deixando ralas suiças. Ao pescoço, um lencinho de seda, torcidinho para o lado. As unhas mantive.

Refiz a cena. Desci da bicicleta, arqueando o dorso para empinar o rabo. Um rabo redondo, injetado na minha murcha bunda. Cuidei para que os pés pisassem com suavidade em linha reta. Ao final do desfile, balbuciaria, com intencional languidez: "– É hoje que levo meu Fass!".

– Que "faz"?

– O Binder, bofe.

– Ah...

O termômetro recuou dois graus. O suficiente para que eu descesse, rapidamente, todos os sete degraus da arcoírica escada dos meus devaneios.

Ela: este final ficou muito gay.

E eu não sei?


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Na Terra do "Não-Dá-Nada"

O pai de uma vítima de homicídio adentra as dependências da polícia judiciária. Munido de arma branca, desfere estocadas no suposto autor do crime. Este não resiste aos ferimentos e morre. Concomitantemente, um juiz está prestes a decretar prisão domiciliar para mais de setecentos apenados que possuem, por força de Lei, direito à progressão penal. Tal se dará – justifica o magistrado – por não haver estabelecimentos que acolham estes detentos sob regime semi-aberto. Os fatos, em si, são isolados e pontuais, mas corroboram com a linha de pensamento que insiste e persiste.

A violência urbana não é prerrogativa de países terceiro-mundistas. Como não se lembrar dos atos de vandalismo que assolaram Paris? Ou do gás Sarin, no Japão? Ou, ainda, daqueles súditos, que exaltam a barbárie de suas origens, quando frequentam as arquibancadas de um campo de futebol, conspurcando os brios e abalando a aparente serenidade de uma realeza britânica?

Todos sabemos que, em qualquer parte do Mundo, penitenciárias não são, nunca foram e jamais serão instituições reintegradoras. Seu papel é meramente punitivo, mesmo que apliquem programas e adotem medidas sócio-educativos. A parcela de adeptos é mínima, condizente com a índole dos indivíduos que deles se beneficiem. Por outro viés, nos deparamos com o estatuto mais esdrúxulo que se poderia esperar dos nossos legisladores: o prêmio por bom comportamento. Ora – me pergunto –, mas não seria isto o mínimo que se poderia esperar por obrigação de um condenado? Parece-me que aí ocorre uma inversão de valores. Não seria justo, em caso de transgressão, aplicar uma majoração na pena daqueles que mal se portam? De que vale, então, essa tal de dosimetria?

A Constituição brasileira nos assegura o direito à vida. A ausência de diploma legal que disponha sobre pena capital, é, sob esta ótica, coerente, se assim se pode dizer. No entanto, nós, ditos cidadãos do bem, é que colhemos, diariamente, as terríveis impressões daqueles que trilham o inapelável corredor que abrevia a existência.

Eu poderia ter me reservado o direito de me calar, feito do parágrafo anterior o ponto final, o crucial do meu protesto. Daquilo que julgo plausível, neste parco arrazoado. Mas, como declarei no início, há uma persistência a ser deglutida, mitigada. As organizações criminosas cobram, entre seus pares, a vida de dois policiais para cada meliante abatido. Vejo, por detrás da fragilidade das leis, os seus mequetrefes autores. À frente de inócuas políticas, corruptos e corruptores. Bem, sou bom atirador. Sei ajustar perfeitamente a massa de mira em relação à alça, em fuzil de longo alcance. E já que não dá nada...


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A Coroa e o Pinhão

A manobra fora malfeita. Por inevitável, o cordão da calçada se interpunha como uma barreira na cobrança de uma falta. Enfim, o choque ocorreu. O pneu ofereceu um baque surdo, seguido de um trincolejar. A correia não suportara a pressão, se rompendo. "Pobre bicheirinha" – pensei.

Já na oficina, adicionei um acessório, como se quisesse compensá-la por danos morais. Junto com o troco, veio a nota, que discriminaria uma correia e um "pézinho". Um "pézinho"? A caligrafia feminina, rechonchuda e arabescada, que caprichosamente aporia uma bolinha no lugar do ponto do i, me desarmou de qualquer perspectiva crítica.

Pedalando divagações, voltei. No caminho, lembrei de como já fora romântico convidar a gata para dar um rolé no aeroporto e bebericar um "cafèzinho". Essa brasilidade, contida no aroma e na forma, em especial nesse charme de entortar o acento para obter o diminutivo, nos tornavam únicos. Por que temos que aceder a reformas e acordos?

Cheguei em casa e estacionei a bicicleta bem no meio do alpendre. Ela se deixou fitar, embevecida. Como uma garota que exibe as peças recém adquiridas num shopping. Examinei-a de alto a baixo. De través. De talho e talhe. A correia lucilante recobrindo aquilo que outrora já se tratou majestosamente por "corôa". Ao centro do rodado traseiro, parei e esbravejei: "Seus gringos de merda, quero ver vocês tirarem o til do pinhão!".